Perfect

Dias assim demoram a acabar... E parecem perfeitos demais.

Para os outros – para os casais eu digo – e para o pequeno grupo que costuma ficar sozinho nessa detestável data, o dia mais ensolarado torna-se uma tarde fria e entediante de inverno, o chocolate mais gostoso vira uma xícara de remédio amargo.

E eu estou incluída nesse grupo com dezenove anos nas costas, trancada num quarto de hotel, vestida num moletom velho encardido e furado contando as horas para essa besteira toda acabar. Eu mesma, May.

E eu detesto o dia dos namorados... Como já deve ter dado pra notar.

Ouço um burburinho passar pela porta do meu quarto, um grupo de casais sem sombra de dúvida e por mais que eu esteja entediada não tenho a menor vontade de sair, porque dói saber que estou sozinha.

Uma batida na porta me faz levantar e atravessar aquela pequena distância para atender, alguém além de mim poderia estar sozinha, alguém viria me salvar desta vez, só desta vez...

-Oi May!-Dawn se adianta e puxa o braço do rapaz ao lado dela, fazendo minha felicidade murchar tão rápido quanto um balão de gás. -Estávamos pensando se você e o seu namorado... -Ela faz um grande esforço para olhar por cima do meu ombro e constatar que não há ninguém ali além de mim. -Há você não...

-Não eu... -Começo com minhas bochechas corando e a cabeça vazia, uma mentira, rápido!-Ele... Saiu - Boa! - e foi comprar uns sorvetes, decidimos passar o... O... Dia dos namorados aqui.

O rosto de Dawn se ilumina.

-Paul você ouviu isso? –O rapaz de cabelos roxos apenas levanta uma sobrancelha e solta um grunhido. -Podemos ficar May?

Não, a resposta vem imediatamente na minha cabeça.

-Há... É muito íntimo sabe... Pensamos em só eu... Ele... Hoje. -Minhas bochechas foram corando, tanto pelo que eu estava dizendo quanto pelo que a minha mentira estava virando.

 Dawn ficou séria e fiquei pensando se eu havia ofendido, minha pergunta foi respondida quando um sorrisinho apareceu na sua face. Ela me olhou de cima a baixo antes de começar.

-Deve ter colocado a primeira coisa que apareceu não é? Estava se preparando!-Ela riu abertamente quando minhas bochechas queimaram.

-GASP!NÃO EU... NÃO, NÃO É ISSO!-Ela ergueu uma mão, fazendo sinal para eu me acalmar, mas mantendo o maldito sorriso no rosto. –DAWN!

-Tudo bem, tudo bem... Eu arranjo outro lugar para ir, não precisa ficar envergonhada acontece com todas nós um dia. -Ela puxou a porta de minhas mãos e foi fechando-a. - Vou dizer as meninas para te deixarem em paz.

-NÃO! Dawn pare de dizer besteiras!-Mas ela já havia fechado a porta.

Bom, pelo menos o meu dia dos namorados seria um pouquinho mais interessante depois dessa. Fugindo de minhas amigas doidas que me perseguirão procurando saber como foi minha primeira noite com meu namorado inventado no dia dos namorados e se houve alguma farra com sorvete...

-Há eu mereço... -Escolhi, dentro de minha mala que estava precariamente jogada num canto ao lado do banheiro, uma jeans azul e uma blusa mais decente que a atual.

Vesti-me rapidamente e coloquei a cabeça cautelosamente para fora do quarto, para ter certeza de que ainda não estava sendo vigiada. O corredor branco estava vazio exceto pelos dois vasos de planta encostados na parede umas duas portas a frente.

Nada aqui...

Caminhei com cautela pelos corredores, aproveitando-me dos vasos de planta para me esconder e verificar se ainda não havia ninguém me seguindo.

E ai eu passei por uma porta, não que uma porta fizesse extrema diferença na minha vida longe disso... Mas aquela me fez lembrar o porquê de eu detestar dar as caras no dia dos namorados.

E cada um dos vãos estava abarrotado de cartinhas cheirosas, cartas-metro, corações de pelúcia e tudo que se poderia imaginar, isso também não me incomodava e sim o dono do tal quarto... O cara que estava atrás daquela porta.

Meu estômago deu uma cambalhota desconfortável.

E Drew tinha que estar aqui justamente no dia dos namorados...

Outra coisa que me deixou mais uns segundos parada ali era perceber que eu não havia recebido nada dele, nem a rosa que já havia me acostumado a receber e que já se acumulavam em meu guarda-roupas cuidadosamente organizadas por data, ano e logo seria necessário por hora mas...

Eu sei é paranóico... Completamente paranóico.

Vamos pular esse pedaço...

E bem ali, na frente daquela porta enterrada atrás de tantos presentes, eu percebi que não era especial pra ele. Era a amiguinha de infância a quem ele dava rosas por puro costume – ou obrigação, tique nervoso não sei... – e quem ele nunca iria imaginar que nutria uma paixonite estúpida por ele desde pirralha.

Puxando o ar com mais força do que o planejado e a passos duros sai da frente daquela porta, longe dela a idéia do dia dos namorados parecia menos dolorosa.

Quando sai do hotel me senti melhor, apenas levemente desconfortável quando algum casal passava ao meu lado, mas completamente renovada de poder sair daquele lugar entediante que meu quarto havia se tornado.

Caminhei um pouco pela praça, desviando dos casais e bem no final pude enxergar uma lojinha de souvenires. Olhei em volta, aquela distância nem Dawn nem Misty poderiam saber onde eu estava e provavelmente estavam entretidas demais com a fofoca recente de Dawn onde eu e meu namorado imaginário estamos passando um dia dos namorados íntimo no meu quarto tomando um pote de sorvete nesse frio.

Entrei saltitante na lojinha livre de casais observando, tocando, fuçando cada pecinha de madeira e cada cantinho que me parecia cada vez mais interessante. Fixando o olhar numa miniatura perfeita de um Espeon com a cabeça apoiada acima da de uma Glaceon numa belíssima cena romântica.

Peguei o enfeite e passei os dedos pelas figuras eternizadas na madeira... Eram tão perfeitas que eu podia ter quase certeza de que os dois se levantariam e acabariam com a magia.

-Acabou de ser feita... –Dei um pulo e quase larguei o enfeite, virando-me para o senhor que observava avidamente por cima de meu ombro. -Quem o criou é um gênio veja só a perfeição com que foi entalhado menina...

-É... Realmente é lindo. -Acariciei o topo da cabeça do Espeon com carinho. -Quanto é?

-De graça... O rapaz o considera um erro, quer fazer algo melhor, mais perfeito. -O senhor fez um gesto de desaprovação e começou a caminhar de volta para o balcão.

-Me parece perfeito... -Respondi, analisando a figura.

-Ele não acha...

Continuei com a peça de madeira na mão observando-a e novamente o senhor da loja começou a falar.

-O rapaz de quem falei ainda está aqui, sentado lá nos fundos da loja entalhando mais alguma coisa. -O senhor deu de ombros pegando um exemplar de jornal e começando a ler. -Se quiser... -Enfiei o enfeite no bolso.

Meu olhar desviou do senhor e perambulou péla loja, passando pelas prateleiras e parando em uma porta que estava escondida entre duas prateleiras empoeiradas, a madeira estava arranhada e empenada, mas mesmo assim caminhei até ela e deslizei os dedos pela sua superfície empurrando-a devagarzinho.

O que eu vi não me surpreendeu nem um pouco, mas ele demorou a me ver. Drew estava entalhando outra raposa em um toco de madeira tão concentrado que era certo que não havia me visto entrar, pois os olhos esmeraldinos estavam fixos acompanhando o movimento da faca. A madeira fazia espirais e caia no chão com movimentos precisos e finalmente resolvi interrompe-lo.

-Sua porta esta abarrotada de cartinhas de fãs, acho melhor ir lá ver antes que elas fiquem desapontadas.-Disse numa voz calma e surpreendi-me por ele não ter levado um susto e sequer alterar o movimento da faca.

-Pensei que ia ficar me observando o dia inteiro... -Ele respondeu de uma forma quase ríspida sem se virar. -O que você quer? Aposto que não veio aqui só para fazer a bondade de me avisar das cartinhas que recebi no dia dos namorados, afinal nem estamos hospedados no mesmo andar para isso incomodar você.

Minhas bochechas coraram de forma instantânea e a história inteira do namorado inventado me parou na garganta. Mas eu não daria este gostinho a ele, não dessa vez.

-Claro que não, vim olhar a loja e por acaso te encontrei aqui. O vendedor disse que você não está muito satisfeito... -Olhei de relance para a sombra do que se tornariam outro casal de raposas.

-Eu sou perfeccionista queria ver vida nisso, mas até agora nada!-Ele cravou a faquinha no toco de madeira e virou-se levemente para mim. -Eu queria algo diferente para ela... Só uma vez...

Corei, ele não fazia parte do grupo dos solteiros, eu é que estava dando uma de idiota parada ali. Enfiei as mãos nos bolsos da blusa e decidi que seria melhor encarar as meninas, contar a verdade sobre toda aquela baboseira do namorado que nunca voltava do que ficar ali vendo Drew fazer um presente para outra.

-Eu já vou... -Girei nos calcanhares e caminhei para fora da saleta na qual ele se encontrava.

-Nem vai me dizer o que achou?-Ele perguntou, mas sequer virei para olhar.

-Ta legal... Só termine, ficará ótimo. –Disse em uma vez seca e fechei a porta. Arrastei os pés pela loja, olhando brevemente as estátuas esculpidas na madeira.

Ao chegar à porta da loja passei a mão no volume que havia em um de meus bolsos, me lembrei das raposas, da cena romântica e a coloquei de volta no balcão.

-Desculpe, não quero.

A sineta da porta tocou quando eu saí, fazendo um eco em minha cabeça e fazendo-a doer um pouco mais. Estava me sentindo pequena... Tão burra... Tão, tão... Idiota.

Eu sempre fui idiota...

Caminhei com passos firmes e fui vacilando ao me afastar da loja, cada vez mais devagar, cada vez mais... Derrotada...

Essa droga de dia dos namorados...

Sento-me num banco no meio da praça, olhando casais passaram a minha frente, mas sem realmente vê-los. Junto minhas pernas perto do corpo e as abraço, eu queria que alguém me abraçasse agora... Dissesse que era besteira... Que ficaria tudo bem... Essas bobagens que costumamos pensar quando estamos sozinhas.

Bobagens só...

Não vale a pena pensar nelas...

Um vento gelado começa a soprar e meu corpo começa a tremer, penso no meu quarto e depois penso no que me espera lá perdendo a coragem, meus joelhos tremem demais e sinto calafrios passarem pela minha espinha. Mas eu não quero sair daqui... Vejo a fumaça branca que se forma quando respiro meus cabelos fustigarem com as rajadas de vento... Só mais um pouco, pra esfriar a cabeça.

E ai eu noto que minha cabeça está fria o suficiente, que aquela dor lancinante parou de me cutucar e voltou para as profundezas de meu peito, minhas juntas doem quando me mexo e os dedos começam a descongelar.

-O que ainda está fazendo aqui?-Uma voz pergunta as minhas costas e antes que eu possa me virar ou ter qualquer outro tipo de reação, me abraça de forma preocupada. -“Pensei que houvesse alguém te esperando...”

-Mas o q...?!-Viro-me dando de cara com um par de olhos verdes. Drew está de rosto corado e desvia de assunto.

-Toma... -Ele me solta e tira a blusa grossa que está vestindo, colocando sobre meus ombros. -Eu vou te levar pro hotel. -Finaliza, passando um dos braços pelos meus ombros e me forçando a caminhar.

Está escurecendo, posso ver algumas manchas alaranjadas misturarem-se no céu com um azul acinzentado e enquanto caminhamos uns poucos casais que ainda se arriscam a ficar no frio, aos beijos, abraçados, tornando a atmosfera mais aquecida e aconchegante.

Sinto o braço de Drew tremer levemente em cima de meus ombros, sua mão gelada roça por um instante em minha bochecha e eu sei que ele está com tanto frio quanto eu estava. Passo os braços a redor dele e tentando o máximo que posso aquecê-lo.

Afaste-se...

Ele tem namorada.

-Não precisa... -Ele murmura completamente sem graça, mas eu nem o escuto, divertindo-me tentando imaginar a cor que as bochechas dele tomaram. -Sério May eu... “Eu to legal...”-A voz foi morrendo quando me encostei a seu peito e continuamos a caminhada em silêncio.

Eu sabia que não o estava aquecendo de verdade, pois eu mesma ainda tremia de frio, mas a sensação de ficar perto de quem se gosta... Aquece, mas aquece por dentro.

Atravessamos a recepção em silêncio, eu sentia minhas bochechas corarem a cada olhar e cochicho – mesmo que não fossem direcionados a mim – subimos as escadas e eu me acostumei a ter seus braços pelos meus ombros...

Um sorriso bobo escapou dos meus lábios, eu estava realmente ali abraçada a Drew subindo as escadas – Uma besteira eu sei, mas indescritivelmente maravilhoso- Paramos, e eu tive a curiosa sensação de que iria flutuar se ele rompesse aquele contato.

-Quer... Que eu suba com você?-Ele realmente parecia em dúvida quando me fez essa pergunta, por mais estúpido que se possa parecer.

-E porque não?-O que te impede- Seria a pergunta correta.

Ele pareceu enrijecer uma expressão de súbita raiva ou o que quer que fosse se apossou de seu rosto. Drew deu um passo de distância de mim e enfiou a mão esquerda no bolso da calça remexendo algo que eu realmente fiquei curiosa em saber o que seria.

-Seu... Namorado está te esperando há horas... –Ele corou e pude notar que não era de vergonha por mais que ele tentasse omitir isso. -Dawn e Misty me mandaram procurar você depois de uns quinze minutos que... Que você congelou em frente a minha porta.

Oh merda, ele viu...

Sabia que havia algo naquele olho mágico...

Corei e afundei as mãos nos bolsos, a situação tornara-se constrangedora, Misty e Dawn deviam estar se descabelando agora... Enquanto eu sumia curtindo minha fossa de dia dos namorados. A verdade novamente me entalou na garganta e eu corei ainda mais... Tentei forçá-la de volta, mas saiu antes que eu pudesse respirar.

-“Desculpe...”-Meu rosto formigava e minhas orelhas latejavam, o sangue que corria em minhas veias devia ter se concentrado num único ponto da minha cara. –“Foi... Uma mentira boba... É dia dos... dos namorados... Sabe como é...”-Murmurei rapidamente enquanto Drew me fitava seriamente. -“Eu sempre fico sozinha...”

Ele sempre soube como era, mas em partes...

Drew sempre supriu a falta de amor com um punhado de garotas...

E nunca ficava sozinho afinal.

Ele acariciou as têmporas e soltou um suspiro cansado, dando as costas a mim e tocando a maçaneta da porta de seu quarto. Uma pontada de desespero tomou conta de meu ser e dei alguns passos em sua direção quase me chocando contra suas costas, o rosto ainda formigando.

-É a terceira vez... A terceira vez que você me faz ouvir essas histórias, que eu tenho que ir atrás de você por causa dessas maluquices e ainda sim... Ainda sim você continua cega!-Drew virou-se tão bruscamente que cheguei a me assustar, seu nariz quase tocava o meu e para que tal façanha acontecesse estava levemente curvado. -Me responde... Só dessa vez May, só para ver se você vai entender... Quem estava lá todas às vezes, em todas as suas fossas de dia dos namorados? Quem?!

-“Amigos não contam...”-Murmurei, cruzando os braços e encarando-o de volta. -E você nunca estaria lá se eu não tivesse me metido em alguma encrenca!

A verdade dói...

A dor incomoda no coração voltou às lembranças dos anos anteriores, as vezes que ele a encontrava num banco, sentada num muro...

Sempre acompanhado. Ela só teve sorte dessa vez...

Era por isso que doía então?

A culpa era dele.

-É ai que você se engana... –Ele cerrou levemente os olhos verdes e sorrindo de leve. -Você é tão boba May que não sei como conseguiu me segurar até agora...

-“Não sou boba...”-Minha voz saiu num tom infantil. -“E pare de falar essas bobagens... Você... Você só consegue... Só consegue me chatear mais!”

O sorriso dele morreu e com as feições sérias Drew colocou as mãos na minha cintura e fitou-me por um instante, buscando palavras provavelmente.

-Desculpe por te chatear... Por estar sendo um idiota esse tempo todo, por te fazer passar todo o dia dos namorados sozinha e por ser tão pouco original em presentes... -Ele corou e eu ri de leve.

Uma lágrima quente escorreu pelo canto do meu olho e eu a sequei rapidamente.

-Eu... Eu realmente espero que não seja uma brincadeira de mau gosto, em que você vai sair rindo e várias pessoas vão sair do nada rindo também... -Minha voz saiu um pouco manhosa enquanto eu me ajeitava para perto dele. -Você promete?

-Prometo...

Estiquei o pescoço para poder ver Drew, que a essa distância ficava ainda mais alto que eu. Suas duas mãos deslizaram pelas minhas costas e o rosto dele desceu o suficiente para que houvesse um contato, o suficiente para que meu coração batesse descontroladamente sob as costelas quando seus lábios tocaram os meus e as respirações tornaram-se uma só.

Um beijo dele...

Conserta qualquer mau humor de dia dos namorados, garanto.

Drew se afastou por um instante, corado e levemente ofegante o que quase me fez rir. Enfiou as mãos nos bolsos a procura de algo e logo me estendeu uma miniatura de um Espeon e um Glaceon com os focinhos se tocando.

-Eu... Não estava achando bom o suficiente, por isso que eu demorei. -O rosto dele tomou uma cor ainda mais avermelhada que a anterior. -E... Isso aqui é... Só pra não perder o costume.

Ele me estendeu uma rosa manchada de branco e vermelho, colocando-a em meu bolso e dessa vez eu ri. Ao menos essa rosa eu identificaria de todas as outras.

Ela fez meu dia passar rápido, terminar bem. Fez o dia frio ficar quente de novo, o chocolate tornar a ter seu sabor doce... Enfim, o dia dos namorados voltar a ter a essência do dia dos namorados.

-Mas apenas para os casais, pode ser considerado perfeito, tão perfeito quanto foi para mim-

...Acho que agora eu gosto do dia dos namorados...

Fim...