Não ser por Jude Melody


 

Não ser

Ficwriter: Jude Melody
HunterxHunter - drama - original
12 anos - yaoi/male slash - completa


Quando eu era criança, meu pai uma vez me levou para uma cidade sombria e cheia de lixo. Eu ainda não compreendia o que estávamos fazendo ali. Segui-o de perto, quase correndo para acompanhar seus passos com minhas pernas curtas. Nós entramos em um prédio abandonado, e ele fez um sinal para que eu subisse as escadas atrás dele. Obedeci, como o bom filho que era.

Nós chegamos a um quarto escuro. Havia um forte cheiro de cigarro no ar. E de carne podre também. Eu fiz uma careta, mas não tampei o nariz. Já havia sentido odores piores. Eu era apenas uma criança, mas já conhecia uma parte do submundo. Agora, eu lhe era apresentado com todos os seus horrores, trazido por meu próprio pai.

Um movimento chamou a minha atenção. Eu vi um homem se levantar de uma cadeira. Era apenas um contorno indistinto, um borrão. Mas eu sabia que era um homem. Ele se aproximou da janela e puxou a cortina com força. O tecido caiu no chão de concreto, e uma luz fina entrou pela abertura deixada por ele.

Na penumbra, o homem sorriu. Eu não conseguia ver seus olhos. Só via sua boca e seus cabelos ruivos. Ele sabia por que estávamos ali. Sacou um punhal, pronto para lutar até a morte. Ele morreu, mas não lutou. Porque meu pai arrancou seu coração antes mesmo que ele erguesse a arma. Foi um movimento rápido e belo.

Quando o corpo de seu oponente caiu no concreto, e o sangue começou a se espalhar aos poucos, meu pai fez um som de resignação. Ele estava decepcionado. Esperava por um trabalho mais emocionante. Virou-se para mim, sorrindo ternamente. Seus lábios se moveram em um quase sussurro. Um dia, você estará no meu lugar, Kill.

Eu dei um salto para o lado, assustado. Fugi por pouco do golpe. O homem que acabara de chegar era muito mais habilidoso do que seu comparsa. Ele subira as escadas sem fazer qualquer barulho, ocultando perfeitamente a sua presença. Mas eu senti o cheiro de cerveja que ele emanava. O cheiro o entregou a mim.

Eu me aproximei. Um sorriso macabro preencheu meu rosto enquanto eu o encarava. Um sentimento estranho me dominou quando o rosto de homem se contorceu de horror. Ele via a minha mão, minha mão pequenina de criança, transformar-se em garra. Antes que o grito subisse por sua garganta, cortei sua jugular.

Parado na penumbra do quarto, observei o cadáver. Meu primeiro cadáver. Senti um calor sobre minha cabeça e levantei o rosto. Meu pai estava ao meu lado, a mão enorme em meus cabelos. Ele estava orgulhoso. Eu fiquei feliz por ele estar orgulhoso. Era a primeira vez que participava do trabalho dele. Era a primeira vez que matava alguém.

Eu tinha quatro anos.

Até hoje não esqueci o cheiro de morte naquele quarto. O corpo em putrefação do cachorro morto. O sangue dos criminosos assassinados. O terror de uma vítima abandonada à própria sorte, perdida no submundo. Esse é um cheiro que pode assumir diversos odores, mas sempre será um rastro da morte.

Sentado no parapeito da janela, fico meditando sobre essas lembranças antigas. Pergunto-me quando foi que tudo mudou, quando foi que eu perdi aquela felicidade pelo orgulho que meu pai sentia. Em algum momento da curva da minha vida, eu decidi abandonar a estrada do assassínio. Não sei o que quero fazer. Eu só sei o que não quero ser.

A voz de Gon desperta-me de meus pensamentos. Ele está parado em frente à porta, sorrindo para mim. Em sua mão direita, segura a vara de pescar que pertenceu a seu pai. Eu sorrio também. Caminho até ele com as mãos nos bolsos. Provoco, perguntando qual de nós vai pescar o maior peixe. Ele rebate, orgulhoso. Tem certeza de que vai me vencer. Nós corremos para a sala, gritamos um até logo para a Mito-san e vamos até o rio.

É um dia quente de verão. Os pássaros cantam alegres nos galhos das árvores. Nós ficamos sentados na sombra, alternando em nossa ingênua competição. Ao final da tarde, Gon abre um sorriso vitorioso. Ele pescou o maior peixe. Enquanto ri de mim, eu o empurro com força, e ele cai na água. Pulo no rio também, e nós brincamos de brigar. É divertido. Muito mais divertido do que arrancar corações.

Quando voltamos para casa, Mito-san aponta direto para o banheiro. Nós dois estamos tão sujos de lama e terra. Ainda estou rindo quando nós nos sentamos à mesa para jantar. A comida é deliciosa, como sempre, e a Mito-san insiste para que eu coma mais um pouco do bolo que ela fez de sobremesa.

Depois de uma conversa trivial, eu e Gon voltamos para o quarto, ambos um pouco sonolentos. Enquanto arrumamos nossas camas, debatemos sobre o dia de amanhã. Ele quer partir logo em uma nova aventura e me chamou para ir com ele. Aceito a proposta sem pensar duas vezes. Amanhã cedo pegamos nossas mochilas e seguimos viagem. Adeus mais uma vez, Ilha da Baleia.

Acontece que eu não consigo dormir. Fico deitado na cama, olhando para o teto. Viro-me de lado e vejo Gon babando no travesseiro. Ele é mesmo uma criança! Mal deita no colchão e já está dormindo! Não consigo evitar um sorriso. É muito bom estar com ele. A presença de Gon me traz uma calma que eu não sei bem explicar.

Então, por que eu me sinto tão estranho?

Fecho os olhos, e ouço as palavras cruéis de Illumi. Mesmo depois de tanto tempo, elas ainda ressoam em minha mente, fortes como o cheiro daquele cachorro morto da cidade sombria. Sinto minha garganta se fechar, mas as lágrimas não veem. Estou triste, mas não consigo chorar. Estou com medo, mas não consigo dizê-lo em voz alta.

E se, algum dia, eu matar o Gon? E se, em um momento de surto, eu cortar a jugular dele? E se, em um lapso de memória, eu voltar a ser aquele assassino que se orgulha ao sentir a mão do pai sobre seus cabelos? E se, apesar de tudo, eu for apenas mais um daqueles que vagam solitários pelo submundo?

Escuto um murmúrio. Gon está se mexendo na cama. Ele diz meu nome. Acho que está sonhando comigo. Presto muita atenção em suas palavras e capto uma ideia simples e ingênua como os pensamentos dele. O Gon só quer brincar. Ele quer se divertir comigo. Não importa meu passado. Só importa que, hoje, eu estou aqui.

Meus olhos começam a arder, mas eu ainda não tenho lágrimas para chorar. Apenas fico deitado, sentindo a emoção em meu peito. E tento acreditar que, de alguma forma, ela é mais forte que o orgulho que eu senti naquele dia em que provei pela primeira vez o sabor do assassínio.

Eu me levanto. Fico de pé em frente ao Gon, observando-o de cima. Seu semblante está tão tranquilo e suave. Sua respiração é tão profunda e calma. Um sorriso feliz preenche meu rosto. Um sentimento estranho domina meu peito. Estico o braço. Toco de leve aqueles cabelos negros, faço uma carícia.

Gon resmunga baixinho e abre os olhos, mas eu já estou deitado em minha cama. Tive menos de um segundo para me mover quando senti a mudança na respiração dele. Felizmente, estou deitado de costas para o Gon, e ele não pode ver o meu rubor. Cerro os punhos, esperando a palavra que não demora a vir. E ela vem. É meu nome. Killua?

Não respondo. Deixo ele pensar que estou dormindo. Após um minuto, ouço os sons da coberta e sei que Gon caiu no sono outra vez. Suspiro, aliviado. Essa foi por pouco. Eu não quero que ele descubra ainda. Porque eu mesmo não sei que sentimento é esse.

O Gon é meu melhor amigo. Só de pensar que algum dia poderia matá-lo, eu sinto vontade de arrancar meu coração e jogá-lo fora. Porque um coração que me permitisse matar o Gon não serve para mim. Mas, ao mesmo tempo, eu não sei que tipo de coração eu quero. Eu não sei de nada! Não sei quem eu sou, não sei o que quero ser. Eu não sei nem que desejos eu quero realizar, que aventuras eu quero viver.

Eu só sei que quero ficar com o Gon. Quero compartilhar com ele cada pequeno segundo de felicidade. Quem sabe assim eu não descubra o que eu quero ser. Quem sabe assim eu não descubra que sentimento é esse que me faz esquecer o orgulho de ser assassino.

 

 

















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