A chuva fina despencava do céu, encontrando o guarda-chuva rubro, o único pedaço de cor daquele cenário escuro. Não havia vento para balançar as vestes negras. Não havia relâmpagos para iluminar a pele pálida. Era como se a noite respeitasse o luto de Feitan.
Seus olhos profundos recaíram sobre o corpo. Era exatamente como se lembrava. Ombros largos, braços e pernas compridos. Um rosto severo, desses com cenho estranhamente franzido. Sem sobrancelhas. Estava tudo ali. Estava tudo ali, exceto a vida.
Feitan ajoelhou-se na terra encharcada. Não se importava de sujar as vestes. Ele era um assassino, afinal de contas. Assassinos estão sempre prontos para se sujarem de sangue. Por isso ele se surpreendeu ao perceber que, pela primeira vez, não queria que o sangue o maculasse. Porque o sangue que havia ali era de Phinks.
Cale a boca...
Ele parecia se dissolver na água da chuva. O ferimento não era visível, mas sua existência era incontestável. Um ataque covarde, por trás. Um corte profundo nas costas, provocado não por uma espada, não por uma foice, mas por uma carta.
A carta do curinga.
Cale a maldita boca...
A mão pálida tocou a testa da esfinge silenciosa. Em tempos passados, esse gesto tão simples seria simplesmente impossível. Agora ele era o único indício do que se passava no interior daqueles olhos profundos. Feitan não se abalava. Por trás da bandana, seus lábios continuavam frios como sempre.
Afinal, ele era um assassino.
Você está me irritando...
Phinks não reagiu ao toque. Sua pele estava quase tão fria quanto a de Feitan. A expressão severa parecia com a de alguém que dorme. E ele estava dormindo. Estava dormindo nos braços do curinga.
Eu não quero mais ouvir essa sua voz irritante, essas suas reclamações irritantes...
Feitan puxou a bandana para baixo com a mão que antes tocara o corpo inerte. Chamou baixinho o nome, mesmo sabendo que seu dono não escutaria. Sem entender direito por que, franziu o cenho. Aquele silêncio... o irritava.
Não quero mais ouvir sua maldita voz...
O guarda-chuva deslizou suavemente pela lama. Desprotegido, Feitan apertava a bandana com força, lembrando-se de cada gesto, de cada palavra daquela discussão. Por que mesmo ficara irritado? Não se lembrava. Aquela fora sua primeira briga séria com Phinks, mas ele não lembrava o motivo do desentendimento.
Tudo o que lembrava era que ficara irritado. Irritado a ponto de dizer à esfinge que não queria mais ouvir sua voz. Irritado a ponto de lhe virar as costas e se afastar a passos largos apesar dos protestos de seu amigo mais íntimo. Irritado a ponto de não lembrar mais, mesmo naquele momento, o que desencadeara as palavras mordazes.
Agora era o silêncio que o irritava.
Então, por favor...
A chuva fina despencava do céu, encontrando o jovem ajoelhado, o único pedaço escuro daquele cenário que se preenchia de vermelho. Não havia vento para balançar as vestes negras. Não havia relâmpagos para iluminar a pele pálida. Era como se a noite desprezasse o luto de Feitan.
Ele sentiu a água escorrer por seu rosto. Estava certo de que era água da chuva, até sentir seu gosto salgado penetrar seus lábios. Parecia impossível, mas, pela primeira vez, Feitan estava chorando. Seus olhos profundos fecharam-se, como se esse simples gesto pudesse conter a dor que se alastrava em seu vazio, como se esse simples gesto pudesse mandar o silêncio embora.
Cale a maldita boca.
Mas o silêncio ainda estava ali.