Beautiful boy

Ficwriter: Jude Melody
HunterxHunter - drama, romance - alternaverse
12 anos - yaoi/male slash - completa


Leorio ergueu o rosto quando o gesto singelo foi captado por sua visão periférica. Kurapika apoiava o cotovelo na mesa e acomodava o queixo em sua mão, uma de suas tantas manias que ninguém sabia explicar. O pequeno sorriso iluminava seus olhos cinzentos, que até pareciam o céu de uma tarde nublada e fria, o tipo favorito de Leorio. Ele sorriu também e ergueu suas mãos, fazendo aqueles movimentos que já haviam se tornado naturais.

Quer chá?

Kurapika balançou a cabeça, risonho.

Chocolate quente, então?

O garoto assentiu vigorosamente, bagunçando seus cabelos louros. Leorio fechou o livro que estivera estudando e caminhou até a cozinha. Kurapika veio logo atrás, brincando de rodar uma de suas várias correntes, a que continha a esfera. Sobre o balcão, o mais velho espalhou vários pratos enquanto o loirinho pegava os biscoitos e os pães doces no armário. O cheiro de chocolate quente preencheu o cômodo, e logo havia um bigodinho nos rostos dos dois companheiros.

Quer assistir a um filme?

Kurapika prestou atenção nos gestos de Leorio e meditou por um minuto. Ergueu as próprias mãos, sinalizando o que queria. O dia estava muito bonito. Um friozinho gostoso inundava as ruas, e as nuvens espessas protegiam as pessoas do sol. Ele queria passear, queria passear com seu mestre. Leorio terminou de beber seu chocolate e acenou com a cabeça, chamando seu discípulo para um dos quartos. Depois de se enterrarem em casacos fofos e gorros de lã, os dois deixaram o apartamento.

Leorio não precisou de nenhum gesto para saber que o loirinho queria ir ao cinema. Havia um pequeno prédio na cidade que exibia filmes mudos, os preferidos de Kurapika. Seus olhos cinzentos arregalavam-se diante das cenas, mesmo quando ele já as tinha assistido tantas vezes a ponto de memorizá-las. Leorio sorria diante da felicidade de seu discípulo. Fazia tanto tempo, mas ele se sentia grato pela decisão que tomara.

Quando visitou o vilarejo pela primeira vez, não havia uma única casa de pé. As cinzas eram sopradas pelo vento, que não era piedoso o suficiente para arrastar também a tristeza. Leorio cerrou os punhos. Chegara tarde demais. Seus amigos choravam pela morte dos Kurutas. Todos se prontificaram a ir àquele pequeno recôndito na floresta quando ouviram a notícia sobre o massacre. Esperavam encontrar alguém, qualquer vivalma que ainda pudesse estar vagando por aquelas terras vazias.

Foi Leorio quem o encontrou. Ouviu um som entrecortado, como um soluço. Tateou os escombros de uma casa, usando a pulsação de sua aura para buscar qualquer sinal de vida. O grito escapou-lhe pela garganta. Havia alguém ali. Alguém vivo! Em meio a todos aqueles cadáveres violados, com buracos negros no lugar dos olhos, existia um único ser cujo coração ainda batia. Leorio rezou. Rezou pela segunda vez na sua vida. Que o Kuruta ainda tivesse olhos, pelo amor de Kami-sama!

Ele ergueu sozinho as ruínas da pesada parede. Levantou com cuidado o armário de madeira. Bem ali, em um espaço diminuto entre os escombros, o corpo de uma criança encolhia-se em um choro. Vários homens e mulheres se aproximaram, mas Leorio os afastou com um gesto. Não queria assustar aquele pequeno sobrevivente. Começou a chamar baixinho, mas o Kuruta continuava chorando apertadinho naquele ninho estranho.

Leorio estendeu um braço trêmulo e tocou seus cabelos dourados. A primeira coisa que viu foram os olhos cinzentos da criança arregalando-se quando ela virou o rosto de súbito. Eram olhos grandes, felinos, que engoliam tudo como se fossem uma tempestade. Leorio encarava-os, estarrecido. Viu a magia acontecer aos poucos quando aquela cor fria foi preenchida por um vermelho profundo. Era como se as cinzas voltassem a queimar, como se o fogo se erguesse outra vez.

Ele murmurou palavras débeis. A criança fitou seus lábios, mas não respondeu. Talvez estivesse em estado de choque. Leorio estava se preparando para retirá-la do ninho nos escombros, prendendo-a com palavras carinhosas, quando uma das mulheres apontou, gritando. Só então ele percebeu. Um rastro tão vermelho quanto o brilho de medo dos olhos, um desenho belamente intrincado, ia do pescoço do Kuruta até o interior de seus ouvidos. Palavras não fariam efeito algum. A criança era surda.

Oi. Tudo bem com você?

Os olhinhos cinzentos fixaram-se nas mãos de Leorio. Ele esperou por um minuto inteiro. Estava quase desistindo quando o menino assentiu de leve. Ele havia entendido. Havia entendido a linguagem dos sinais. Essas eram suas palavras agora. Ele falaria com mãos, com os braços. Mas também com os olhos, com o sorriso, com os pés que dançavam alegres nos dias de chuva.

Eu sou L-E-O-R-I-O. Vou cuidar de você a partir de hoje.

A criança repetiu o gesto, movendo seus dedinhos. L. E. O. R. I. O. Um sorriso surgiu no rosto do mais velho. Ele acariciou os cabelos louros do menino, feliz por ele estar aprendendo. Desde então, os dois eram inseparáveis. Qualquer um via o quão próximos eram. Uma ligação inexplicável, que excedia as capacidades da linguagem. Eles moviam dedos, mãos, murmuravam em silêncio com os lábios.

Leorio tinha dezoito anos quando aprendeu a cuidar de alguém que não fosse ele mesmo. Agora, oito anos mais maduro, observava Kurapika deixar-se hipnotizar pela jovem que dançava serelepe na enorme tela, jogando seus longos cabelos negros para todos os lados. Ela tinha a mesma vivacidade que o loirinho, que já não era mais criança. Ele tinha a mesma idade que seu mestre possuía quando ergueu as ruínas daquela parede.

Ao cair da noite, eles retornaram ao apartamento. Kurapika despiu o casaco, sentou-se no sofá de pernas cruzadas e fechou os olhos. Estava na hora de treinar. Leorio abriu um sorriso triste. Fazia apenas dois anos que o discípulo lhe contara seus objetivos. Ele queria vingança. Queria vingar o sangue derramado no solo de seu vilarejo. Queria vingar as cinzas às quais foram reduzidas as casas em que vivera.

Isso é loucura! Está querendo se matar?

Leorio gesticulava como um louco enquanto Kurapika balançava os braços de forma desconexa. Mas a raiva daqueles movimentos era a mais explícita de todas as linguagens de sinais. O loirinho saiu do apartamento, batendo a porta. Leorio chutou metade dos seus móveis, quebrou todos os objetos de vidro que estavam ao alcance de suas mãos. Quando não tinha mais nada para quebrar, encolheu-se no chão, chorando, como se fosse ele a criança no ninho de escombros.

Quando Kurapika voltou, o inverno já havia passado, mas a tempestade permanecia em seus olhos. Ele mostrou a corrente, e uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Leorio. Não queria aceitar que aquela criança que salvara, que criara com tanto carinho, havia escolhido o caminho da morte. Abraçou-o. Queria espantar para longe toda a sua tristeza. Kurapika levou a mão da corrente a seus cabelos e começou a acariciá-los. Um gesto simples, mas que expressa tanto, tanto. As lágrimas escaparam sem controle. De ambos.

K-U-R-A-P-I-K-A.

O discípulo ergueu o rosto, confuso. Não era hábito de seu mestre distraí-lo do treinamento assim.

Eu te amo.

Lá estavam eles. Os olhos vermelhos. Kurapika tinha dezoito anos quando descobriu que amava alguém.

 

Leorio cerrou os punhos. Chegara tarde demais. E, desta vez, ele estava sozinho.

A notícia do leilão atraíra pessoas de todos os lugares. Ricos, pobres com a esperança de se tornarem ricos, trapaceiros, salafrários, mafiosos. Assassinos. Kurapika sabia que os monstros de sua infância tentariam transformar aquela situação no roubo do século. Era sua chance de finalmente testar a corrente. Era a sua chance de se vingar. Ele fugiu de Leorio pela segunda vez. E não voltou mais.

Agora Leorio estava parado no meio do deserto, com um impiedoso céu estrelado cobrindo sua angústia. Não havia uma nuvem sequer, apenas o manto de estrelas que faiscavam como se debochassem dele. As lágrimas escorreram por seu rosto. A voz escapou por sua garganta, entrecortada. Foi rasgada pelo grito que preencheu a noite. Um grito que vinha do mais profundo recôndito, mas de que isso adiantava? Não havia ninguém ali para ouvi-lo.

Ajoelhado, a fronte do rosto sobre o terreno arenoso, Leorio chorava. Seus dedos arranharam o solo, infelizes por saberem que nunca mais precisariam gesticular a linguagem de sinais, que nunca mais precisariam dizer... K. U. R. A. P. I. K. A.

 

Kurapika estava chorando sozinho no quarto. Leorio esfregou o rosto, impaciente. Não com a criança, mas consigo mesmo. Irritara-se com o menino por um motivo bobo e começara a gritar. Quando viu seu olhar de espanto, lembrou-se de que era surdo, e disse com gestos todas as palavras mordazes que deslizavam por seus lábios. Em menos de um instante, ele já não estava mais na sua frente. Desaparecera. Refugiara-se no quarto.

Leorio acendeu a luz. O loirinho voltou-se para ele, os olhos vermelhos, mas não do choro. Seu medo era evidente. Tudo o que ele mais queria era fugir. Leorio inspirou fundo e levantou os braços. Por um instante, Kurapika achou que ele estivesse fazendo os sinais para seu nome, mas os gestou não batiam. Não, as palavras que ele dizia eram outras.

Feche seus olhos. Não tenha medo.

Kurapika piscou. Uma lágrima solitária escorreu por seu rosto corado.

O monstro se foi. Ele foi embora, e seu mestre está aqui.

Os olhos cinzentos estavam de volta. Atentos. Hipnotizados. Aqueles gestos eram como uma música que não podia ouvir com os ouvidos. Mas com o coração, sim.

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

Os olhos cinzentos piscaram.

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

As lágrimas escorreram. Não dos olhos cinzentos. Dos olhos castanhos.

 

Leorio sentiu uma leve carícia em sua nuca. Era tão suave, quase fugaz. Ele se questionou se não seria apenas imaginação. Mas suas mãos grudadas ao solo sentiram o movimento por meio da pulsação da aura. Uma batida cálida que ele seria capaz de reconhecer em qualquer lugar, em qualquer era. Ergueu o rosto marcado de lágrimas... E lá estavam os olho cinzentos, engolindo-o como se fossem uma furiosa tempestade. Leorio moveu os lábios.

Kurapika...

O loirinho sorriu. Depois de tantos anos, aprendera a arte da leitura labial. Mas não precisava dela para reconhecer seu nome nos lábios da pessoa que amava. Ajudou seu mestre a ficar de pé, olhando-o sempre meio tímido. Leorio perguntou o que havia acontecido, gesticulou como um louco, o coração batendo em uma velocidade que os dedos não conseguiam acompanhar.

Kurapika indicou com a cabeça um ponto distante do deserto. A terra ali fora remexida, erguia-se em um montinho baixo. A cruz de madeira era um recorte grosseiro sob a luz gélida da lua. O inimigo estava morto e enterrado. E o loirinho estava bem. Com as roupas todas rasgadas, o rosto coberto de sangue, mas bem.

Kurapika?

As mãos do loirinho moveram-se lentamente, como se quisessem gravar no ar cada uma das palavras silenciosas. Ele explicou que matara um homem. A batalha fora difícil, mas ele vencera. E agora estava pronto para dar continuidade à sua vingança. Procuraria os outros assassinos. Mataria-os um a um, até que todos estivessem vazios como os cadáveres sem olhos que assombravam seus pesadelos.

Leorio abraçou-o. Não queria deixá-lo ir. Pela segunda vez, Kurapika acariciou sua nuca. Afastou-se de leve, a cabeça baixa. Depois de todos aqueles anos, sentia-se um ingrato. Eram dez. Dez anos. De paciência. De carinho. De amor. De chocolate quente e de caminhadas em tardes cinzentas. Era tudo tão belo e tão distante. Um passado que já não lhe pertencia. Mas que pertencia a Leorio.

E Leorio não abriria mão dele com tanta facilidade.

Feche seus olhos.

Kurapika piscou sem entender.

Não tenha medo.

Os olhos cinzentos estavam fixos nele.

O monstro se foi. Ele foi embora, e seu mestre está aqui.

A tempestade rugiu, engolindo tudo. Engolindo gestos, palavras... Tudo...

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

Leorio abriu um sorriso triste, lembrando-se daquela tarde. Do ninho nos escombros. Das intrincadas linhas vermelhas. Do olhar assustado e escarlate.

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

Lembrou-se dos primeiros gestos da criança. De como ela movia os dedinhos inseguros, tentando aprender o que se tornaria sua principal linguagem.

Antes de você ir dormir...

Lembrou-se dos choros que o despertavam no meio da noite. De como se arrastava sonolento até o quarto do loirinho e o puxava para seus braços, tentando embalar seu sono. De como pousava o queixo em seus cabelos dourados, balançando levemente o corpo e cantarolando baixinho, ciente de que o menino podia sentir a vibração de sua garganta.

Faça uma pequena oração.

Lembrou-se das mãos envolvendo a taça. Do loirinho lambendo os lábios enquanto movia as pernas para se acomodar melhor.

Todos os dias, de todas as formas...

Lembrou-se dos cristais formando-se na água e do sorriso deslumbrante de seu pequeno discípulo, que dizia com os olhos cinzentos o quanto a alegria era intensa.

Estão se tornando melhores e melhores.

Lembrou-se dos olhos vermelhos fitando a água. Não houve nenhum sorriso dessa vez. Apenas o silêncio profundo da descoberta.

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

Os pés descalços dançavam sobre as poças de água. O riso preenchia toda a pequena praça.

Lindo, lindo, lindo, lindo menino.

Os dedos esfregaram o bigode de chocolate, borrando-o ainda mais. Leorio estendeu um pequeno lenço e começou a limpar aqueles lábios.

Antes de você atravessar a rua...

Leorio correu para alcançar o garoto, que se jogava sobre a bancada da bilheteria do cinema. Afastou-o com uma expressão severa no rosto, mas ela logo se desmanchou diante do brilho cálido daqueles olhos cinzentos.

Segure minha mão.

Os dedos moviam-se, mas não formulavam palavras. Kurapika estava tentando criar desenhos com sua aura. Leorio sentou-se a seu lado no sofá e ficou observando. Um passarinho surgiu diante de seus olhos, movendo as asas como se acenasse para ele.

A vida é o que acontece com você...

A corrente estava bem ali, quase tão concreta quanto a tristeza que Leorio sentia. Ele desviou o rosto. Não tinha orgulho. Não daquilo.

Enquanto você está ocupado fazendo outros planos.

A caneca de chocolate quente já esfriara há muito, mas Leorio não ousava retirá-la da bancada. Não enquanto o loirinho não voltasse.

Lindo, lindo, lindo...

Os olhos brilharam escarlates. Kurapika acompanhava cada gesto de Leorio, hipnotizado...

Lindo menino.

E o vento noturno do deserto cantava em seus ouvidos, mas a música que ele ouvia era outra.

Lindo, lindo, lindo...

Kurapika ergueu os braços também, gesticulando com a mesma insegurança de quando fora apresentado à linguagem de sinais. Fez um L, depois um E, depois um O, depois... As letras se perderam. Seus dedos tremiam. Ele moveu os lábios débeis, desejando desesperadamente que Leorio entendesse, que Leorio soubesse que... que ele o amava também.

Lindo menino.

Os braços caíram de cada lado de seu corpo, exaustos. Os lábios fecharam-se. Kurapika fechou os olhos enquanto as lágrimas escorriam silenciosas por seu rosto.

 

 

















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