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Ainda pequeno, eu ouvia minha mãe dizer o quão vasto era este mundo. Nós vivíamos no escuro, abrigados pelas profundezas deste mar que se estende além de minha compreensão. Eu nunca entendi por que morávamos sozinhos. Onde estavam os outros como nós? Onde estavam aqueles que eu poderia chamar de amigos? Eu não sabia. Por isso, sempre perguntava à minha mãe. Ela me dava respostas ríspidas, um “cale-se” seco e maldoso. Até que, um dia, ela me bateu. Foi então que eu parei de perguntar.

Nós éramos párias, e como párias aprendemos a viver. Ela me ensinou a preparar poções, a criar magias. Era incrível sentir o poder descendo dos meus dedos às pontas de meus tentáculos. Eu sorria para ela, e ela sorria de volta. Nós éramos poderosos, incríveis. Não demorou muito para que os fracos buscassem nossas bênçãos. Eram almas pobres, pobres almas desafortunadas. Algumas queriam amor, outras, fortuna. Nós ajudávamos, claro que ajudávamos. Éramos bons e misericordiosos, ao contrário daqueles que nos renegavam.

— Beba e atrairá a atenção da pessoa que ama — dizia minha mãe, oferecendo o frasco com a poção do amor.

— Obrigado, obrigado — respondia o tritão, estendendo os braços ávidos.

— Mas... — Minha mãe afastava o vidro, lançando sobre o cliente um olhar de advertência. — Se sua amada não corresponder seu amor em três dias, sua alma será minha.

Ela sorria, e seus dentes pareciam afiados. Os tritões e as sereias sempre se encolhiam nessas horas, mas, no fim, aceitavam as condições. Cedo ou tarde, todos acabavam voltando. Nós logo nos tornamos conhecidos. Na verdade, minha mãe se tornou conhecida. Úrsula, a bruxa do mar. Eu era apenas o filho franzino que vivia escondido, preparando as poções e feitiços que ela me ensinara com tanto esmero. Eu nunca negociava com os clientes, nunca trocava sequer um “olá”. Mas era feliz. Eu era feliz porque minha mãe tinha orgulho de mim.

Até que veio a tempestade.

Tritão, o rei dos mares. Ele matou a minha mãe. Matou-a e libertou todos aqueles que haviam negociado conosco. Era uma quebra patente de contrato; aquelas almas nos pertenciam! Mas Tritão não ligava. Ele era poderoso e sabia disso. Tinha poder suficiente para oprimir os fracos. E os fracos eram eu e minha mãe... A mim o rei dos mares não feriu. Desconhecia a minha existência. Talvez fosse por isso que minha mãe sempre me manteve escondido. Ocultar-me de todos foi seu maior ato de amor.

— Mãe querida... — chamei quando todos já haviam abandonado o campo de batalha. Estávamos sozinhos, eu e ela. Ao nosso redor, os destroços do que antes fora nossa casa. Tritão destruíra tudo. O meu lar. A minha família. A minha dignidade. — Mãe...?

— Daren — Ela suspirou. — Você está aí?

— Sim, mainha — respondi, contendo minhas lágrimas como podia.

Ela estendeu o braço e acariciou o meu rosto. Tocava a mesma face em que me dera o tapa alguns anos atrás. Entre soluços, eu toquei sua mão de volta e tentei não olhar diretamente para o furo profundo no lugar em que antes estivera seu coração.

— Você está sozinho agora, Daren. Você terá de sobreviver por sua própria conta.

— Mas, mainha...

— Você é forte... Eu te ensinei tudo o que sei... — Ela abriu um sorriso sem vida. Nem mesmo os lábios vermelhos eram capazes de animar aquele rosto repleto de dor e frieza. — Lute. Meu filho...

Não consegui mais conter as lágrimas. Eu estava destruído por dentro. Por quê?! O que nós havíamos feito de errado?! O quê?! Eu não compreendia... Eu não entendia... Toda a dor que desaparecera do rosto de minha mãe quando ela desfaleceu alastrava-se em mim. Nós dois frios. Nós dois sem vida. Eu descobria que tudo tem um preço. E, às vezes, é um preço doloroso a se pagar.