Âncora - (latim ancora, -ae) s. f. 1. Mar. Instrumento de ferro que, ligado ao navio por uma corrente e lançado ao fundo da água, o mantém seguro; 2. Fig. Amparo; recurso; proteção.
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O que lhe restava? Somara-se ao tempo, deformara-se e no espelho quem estava por trás da face bruta de epiderme seca e flácida; os cabelos despenteados ainda havia, não tão vivos, ao decorrer das longas horas ganharam um aspecto untuoso, os fios iam caindo uns sobre os outros e entre as madeixas negras surgiam as marcas alvas, que ora reapareciam para sua surpresa no reflexo daquele estranho que se tornara... Das cordas vocais, perdeu-se a elasticidade, a voz em ligeira rouquidão, desconhecida quando entoada, parecia que dentro de si falava e seus sons eram mixados por um corpo alheio, desacostumado, desconfortavam as palavras entoadas, qualquer hino de glorificação, e quando agradecia, assustava-se com o obrigado que o outro e ele mesmo ouvia. Era sua condição viva.
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E as memórias sutis? Permanentes. Eternas enquanto o esquecimento não delas se apossa. Recorda-as, em seu ato contÃnuo, seu fato diário, exposto em sua pelÃcula fotográfica mental, tudo ganhava novos matizes multicoloridos, parecia que se enchiam de um detalhismo minimalista. Não, suas reminiscências não eram em preto e branco como as fotografias dos jornais, nem ao menos em sépia brônzea que parecia ser um lamento constante daquele que se rememora. Não, seu filme falado era uma explosão: o azul infinitamente mais profundo dos céus noturnos que tingiam a abóbada arquitetura medievalista; o verde-musgo, as folhas e as gramas, vivas, tão vivas que lhe ricocheteavam enquanto tentava entrar numa toca que se perdia na memória; o vermelho irradiante que relampejava dos seus feitiços chocando-se com um alheio e explodindo em milhares de pontos estranhos e esta cena enublada lhe causava uma angústia mortÃfera; ao mesmo tempo, o rubro o remete aos fiapos ruivos tão fraternos de um alguém e os busca em imagens velhas, contudo depara-se apenas com os aflitivos tons cinzentos e pastosos que lhe enodam os músculos da face, constrangido, resolve esquecer as cores que lhe causam um entristecimento, cuja fonte não se esgotava no decorrer das horas, dos dias, das semanas, meses e anos...
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A fama! Ainda lhe abordam, sorriem-lhe, apontam-lhe dizendo “o menino que sobreviveu, ele salvou a todos”, havendo um tom amoroso nessas palavras pedregosas que lhe infligem à s memórias, e delas escapava, no seu escapismo constante e falho, pois à s lembranças se ancora. Não, não gostava dos seus feitos heróicos; poderia ser um qualquer, um banal numa Rua dos Alfeneiros, número quatro, num quarto debaixo de uma escada, vivendo a mercê de aranhas e poeira — mas ser-se era sua obrigação e por isso vivia na sua clausura, num isolamento, sem cartas, sem falácias, sem outros, sem filhos, sem mulher, a solidão pura, o seu desabrochamento, os amigos perderam-se, a famÃlia esqueceu-se, mas a fama perpetuava-se. Por quê? E de sua existência tão magnÃfica, o que lhe restava? A felicidade plena já não é tão plana. Parece um mar que foi, foi, foi, em recuo permanente e ele ainda continua a sua espera, a espera de molhar os pés mais uma vez na água marÃtima e adquirir dela a salinidade que lhe falta, a glorificação, a eternidade...
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Mas, agora morte é uma possibilidade, sua verdade silenciosa, seu peso fatÃdico que lhe inunda de uma realidade não-mágica. Agora ela é concreta, poderosamente viva, ao seu lado — enquanto ele se olha no espelho e se pergunta se ainda há um resquÃcio de si. Por fim rende-se, deixa-se mergulhar nas lembranças felizes, quando a salinidade ainda se acumulava nos poros da sua pele. Deixando-se banhar nele, no seu mar hermético e cruciante.
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À MERCÊ
por: jlucas
betagem: ka
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FF-Sol 100 Temas- Desafio Miss Sunshine 2010
Tema: 37. Âncora