- Mas que botas mais lindas, gêmea! – disse Erin, tirando de meu armário um par de botas que eu já não via há meses.
- O quê? – eu olhei as botas com atenção e senti meu rosto corar. Era o par que eu tinha guardado durante tanto tempo porque Damien dissera que era bonito!
- Elas são lindas mesmo. Você me emprestaria?
- Claro, gêmea! – respondi diante do olhar brilhante de Erin – Afinal, até temos o mesmo número de calçado.
- Valeu, gêmea! Você é demais!
Ela vestiu as botas e andou de um lado para o outro no quarto. Parecia alegre de verdade. Então, pegou a bolsa e disse:
- Vamos dar uma volta pelo campus antes da próxima aula?
- Hum... Er... Vá em frente. Eu te alcanço mais tarde.
Ela ergueu as sobrancelhas, visivelmente surpresa. Pude ver a tristeza perpassar seus olhos. Ah, mas o que mais eu poderia esperar? A gente nunca se separava!
- Certo. Até mais tarde, gêmea! – Erin acenou e saiu do quarto.
Eu me deixei cair na cama. Minhas pernas pareciam tremer de nervoso. Droga! E eu tinha tanta certeza de que tinha conseguido empurrar aquelas memórias para o fundo da minha mente! Mas, não! Quando eu menos esperava, elas apareciam de novo, vivas e nítidas.
Fechei os olhos por alguns minutos. Esperei até meu coração voltar a bater no ritmo normal. Então, calcei minhas botas pretas e me preparei para encontrar a Erin. Saí do quarto e fui até a sala comum que os novatos dividiam.
“Acho que vou beber uma coca antes de sair.”
Estava a caminho da cozinha, quando vi algo que chamou minha atenção. Deitado em um sofá, um dos braços sobre um livro, e o outro pendendo de forma que a mão tocava o carpete, estava ele.
Damien.
Olhei em volta, atenta. Não havia mais ninguém na sala. Estavam todos aproveitando aquela noite gostosa. Esquecendo meu refrigerante por alguns segundos (eu nunca faria isso em condições normais, minha Deusa!), aproximei-me de Damien.
Fitei seu rosto.
Deusa, sim! Ele era mesmo bonito! Podia não ser tão gostoso quanto os amigos do Erik (ou o próprio Erik), mas com certeza era muito, muito fofinho. Não era à toa que Jack era tão apaixonado por ele.
Balancei a cabeça.
“O refrigerante, Shaunee. O refrigerante. E não esqueça que a Erin está esperando por você.”
Eu me virei para ir à cozinha. Damien deve ter murmurado alguma coisa, porque eu dei um salto e voltei atrás. Nada. Ele ainda estava de olhos fechados, o peito subindo e descendo lentamente com a respiração.
Bufando de raiva (e sem saber de onde vinha essa raiva), fui até a cozinha para pegar um refrigerante. Como faz mal tomar bebida com gás de estômago vazio, peguei também algumas batatinhas saudáveis. Sentei-me à mesa (Damien levou três meses para me ensinar a regência correta, mas eu finalmente aprendi!) e comecei a comer sozinha.
Estava distraída, divagando enquanto mordiscava uma batatinha, quando aquela gata apareceu. Eu não faço ideia de quem seja o dono dela, mas não deve ser um novato muito cuidadoso. Essa felina está sempre perambulando por aí a seu bel prazer. Não que os outros gatos sejam muito diferentes...
Ela me fitou com seus olhos amarelos, miou baixinho e veio até mim. Ficou se enroscando entre as minhas pernas. Como se eu já não soubesse o que aquela interesseira tanto queria.
- Está bem! Está bem! Mas não venha reclamar quando tiver dor de estômago! – disse, jogando uma batatinha no chão.
A gata cheirou, lambeu o focinho e foi embora. Irritada, larguei tudo em cima da mesa e fui atrás dela. Em direção à sala comum.
Damien ainda estava deitado no mesmo lugar de antes, a boca um pouco aberta, como se ele tivesse falado sozinho durante o sonho. Engoli em seco e olhei em volta de novo. Ainda não havia ninguém. Estávamos sozinhos.
Reunindo coragem, fechei os olhos. Minhas pernas começaram a tremer, mas eu me apoiei no braço do sofá. Agachei-me levemente, até que sentisse a respiração de Damien em meus lábios. Sem resistir, abri os olhos lentamente... E quase caí para trás.
- O que você está fazendo? – aqueles olhos miúdos de sono encaravam-me com uma estranheza colossal.
- Ah, Damien! – eu fiquei de pé – E-eu só estava procurando a minha lente!
- Desde quando você usa lente? – ele se sentou, esfregando a nuca.
- Ah... Hum... Eu tropecei em um gato.
- O quê?
- Seu livro caiu no chão!
- O que...? Oh...
Ele pegou o livro de capa dura. Caninos brancos de Jack London. Nunca ouvi falar! Eu estava pronta para uma enxurrada de perguntas, mas Damien apenas disse:
- Falta muito para a próxima aula?
- Ah... – olhei meu relógio de pulso – Quinze minutos.
- Eu preciso me arrumar...
“Por quê?” pensei “Você já está tão bonito! Ah, espere...”
Ele ficou de pé e caminhou lentamente até um dos corredores. Eu achei que estivesse a salvo, mas é claro que não estava. Damien é perspicaz demais. E eu nem aprendi essa palavra com ele! Ok, certo. Aprendi, sim.
- Sabe, pelo bem da nossa amizade, eu vou fingir que isso nunca aconteceu.
Foi como se ele tivesse enfiado uma estaca no meu peito, por mais clichê que isso possa parecer. E eu sabia que não adiantaria mentir.
- Desculpe...
- É ao Jack que você deve pedir desculpas. – ele soou severo – Não importa agora. Nada aconteceu.
Sei que isso é patético, mas naquele momento eu fiquei tão triste que tive vontade de chorar.
- Eu não fiz por mal!
- Eu confiei em você! – ele rebateu – E achei que você gostasse de mim... pelo que eu sou.
- Mas eu gosto! Você é inteligente, bonito, meigo... O problema é que...
- O quê? Eu sou gay?
- Você nunca gostaria de alguém burra e fútil como eu! – soltei de uma vez.
Pronto. Então, eu estava de cabeça baixa, lutando para conter as lágrimas. Ouvi Damien suspirar e um momento depois ele estava bem ao meu lado, passando a mão de leve em meus cabelos.
- Em primeiro lugar... – ele disse com um tom voz totalmente diferente de todos que eu já tinha ouvido – Você não é burra, muito menos fútil.
Eu funguei.
- Em segundo lugar... – eu o olhei nos olhos – Por favor, esqueça.
- É que você é tão perfeito...
- Shaunee, pela nossa amizade?
- Eu sei! Eu sei... – dei de ombros – Desculpe.
- Ei. – ele pegou minha mão – Você é uma garota maravilhosa. Algum dia ainda vai encontrar um garoto que te mereça. Prometo.
- Mas e se o próximo garoto por quem eu me apaixonar me fizer sofrer?
- Então, eu chuto o traseiro dele!
Eu ri. Era engraçado imaginar o Damien dando um chute no traseiro de outro cara. Ainda mais sendo o Damien, sempre tão fofo e meigo e completamente contra o uso da violência para resolver seus problemas.
- Isso não parece você...
- Aprendi com uma amiga.
Eu ri, mas as lágrimas ainda escorriam por meu rosto. Aquele era, com toda certeza, o fora mais colossal de toda a minha vida. Como se não pudesse ficar pior, Jack apareceu do nada.
- Oi, meu docinho! – disse aquela coisinha ruiva linda – Como você...? Ah, Shaunee! Por que está chorando?
“Ah, m****!”
- Eu contei para ela a história do Caninos Brancos. – Damien levantou o livro – E ela ficou emocionada.
- Ah, a história é mesmo linda! Eu também fiquei emocionado! Mas tudo acabou bem, Shaunee. – ele se virou para Damien – Podemos ir agora? Estamos atrasados.
- Claro, vamos. Shaunee?
- Eu alcanço vocês depois.
Eles se foram. Jack tagarelava animado sobre qualquer coisa. Damien ouvia com atenção. Ele não olhou para trás. Minhas pernas fraquejaram de novo e eu me sentei no sofá para não cair no chão. Estava arrasada. Mas, de alguma forma, sentia um alívio profundo e sereno.
Uma coisa fofa e peluda enroscou-se em minhas pernas. Não precisei olhar para saber que era minha amiga gata.
- Ei, este será o nosso segredinho, certo?
Ela me fitou com aqueles olhos amarelos e miou baixinho.