Meu coração, não sei por que,
bate feliz quando te vê.
(Pixinguinha)
- Veja. O sol está sorrindo. – disse Senritsu, apontando o pequeno círculo no céu.
Kurapika desviou os olhos das anotações que fazia e procurou o rosto sereno de sua companheira de missões. Com aquele ar levemente apaixonado e a sugestão de sorriso escondida em seus lábios, ela quase parecia tresloucada. Ora, astros não sorriem.
- Desculpe, do que está falando? – ele perguntou, já atordoado com a infinidade de pensamentos que corriam por sua mente. Afinal, ele tinha um relatório para fazer. Um relatório que deveria preencher um pequeno espaço da mesa de mogno do Senhor Nostrad ainda no final daquele tarde.
Senritsu voltou-se para ele, divertida.
- Você se preocupa demais com o trabalho, Kurapika. Acho até que não percebeu ainda onde está.
- Claro que sei onde estou. – respondeu o outro, ressentido – Estamos no parque da cidade!
A Hunter inclinou a cabeça para o lado. Não estava satisfeita.
- E?
Ele ergueu as sobrancelhas.
- E o quê?
- O sol está sorrindo! – Senritsu recostou-se no banco com uma expressão travessa no rosto.
O Kuruta suspirou.
- Acho que aquela missão no Paraíso das Flores não lhe fez bem. Eu sabia que o perfume daquelas rosas era perigoso. Você cheirou apenas uma delas e veja só como está! Parece que perdeu o senso!
Aquele comentário divertiu-a ainda mais. Em vez de rir, porém, Senritsu ergueu o indicador diante dos olhos curiosos de seu amigo.
- Sabe o que eu ouço?
Isso chamou sua atenção. Por um breve instante, ele deixou o relatório de lado e se concentrou naquelas faces rechonchudas como as de um bebê.
- Eu ouço crianças brincando, pássaros cantando, casais de mãos dadas fazendo juras de amor. E eu escuto – disse, encostando o indicador no peito do Kuruta – umas batidas tristes e zangadas que até parecem as lamúrias de um condenado. – a expressão de Senritsu suavizou-se – O que te preocupa, Kurapika?
O jovem loiro suspirou pesadamente. Desta vez, a sugestão de sorriso estava em seus lábios. Senritsu fitava-o. Séria. Preocupada.
- Neon.
Aquela simples palavra era o suficiente para a Hunter musical. Ela conseguia interpretar as notas escondidas na voz do companheiro, como se lesse as entrelinhas de uma prosa. Suspirou também.
- Não é fácil, não é?
- Não mesmo. – ele respondeu em voz baixa, fitando o gramado.
Senritsu não voltou a fazer perguntas. Sabia o que se passava na mente do Kuruta mesmo sem questionar. O passado dele ainda lhe era misterioso, é verdade, mas ela era perspicaz o suficiente para compreender, sem que qualquer palavra fosse dita, que algo em Neon afetava demasiadamente o rapaz.
- Ela me disse uma coisa... – ele engoliu em seco – Uma coisa que me preocupa.
Mesmo sabendo que o assunto não era, para usar o bom português, de sua conta, Senritsu não resistiu ao impulso de perguntar:
- O quê?
Ele levantou a cabeça lentamente e olhou na direção do sol. Seus cabelos dourados roçaram sua testa e suas orelhas com o movimento. Os cabelos dourados que a Hunter musical queria tocar.
- Um mau agouro.
Nada como uma conversa animada no parque, pensou Senritsu, sentindo as bochechas corarem de vergonha. Talvez ele estivesse certo. Talvez ela tivesse perdido o bom senso. O que achava que estava fazendo? Enchendo o jovem de perguntas e comentários inconvenientes! Não era surpresa que eles conversassem tão pouco!
- Por que o sol está sorrindo?
A pergunta pegou-a desprevenida. Senritsu olhou para o lado, a boca levemente aberta de surpresa. Kurapika sorria para ela, sorria de verdade. As folhas do relatório enfeitavam o chão.
- Ora, porque... É porque o dia está lindo.
O Kuruta observou o cenário à sua volta, inspirando fundo. Viu as crianças brincando, os pássaros cantando, os casais andando de mãos dadas.
- Acho que tem razão. – disse, por fim.
Eles ficaram em silêncio por alguns preciosos segundos, presos em sua própria serenidade. Ou, devo dizer, Kurapika estava preso em sua serenidade. Senritsu, por sua vez, cantarolava uma canção em sua mente. Uma canção ritmada pelos batimentos cardíacos de seu companheiro de missões.
Ah, talvez aquelas flores fossem mesmo alucinógenas.
- Kurapika!
A canção foi quebrada pelo grito que se misturava à infinidade de vozes que compunham a orquestra do parque. Senritsu virou o rosto, curiosa, e viu com clareza um homem de terno correr em sua direção. Será que ele não sentia calor com aquelas roupas? Pareciam ser mais quentes até que o tabardo azul do Kuruta.
- Kurapika! – repetiu o homem, diminuindo o passo.
Ao seu lado, Senritsu sentiu o companheiro de missões ficar de pé. Ele passou por ela e fez um gesto impaciente com as mãos.
- O que faz aqui, Leorio?
- Poxa, é assim que você me recebe depois de todo esse tempo? – disse o outro, finalmente encerrando sua corrida – Que tal um “oi, Leorio”, para variar?
- Oi, Leorio. Quanto tempo. – respondeu o Kuruta – O que está fazendo aqui?
- Melhorou.
Leorio esticou os braços, espreguiçando-se. Só então Senritsu reparou no cachorro dourado que se postava fiel ao lado do mestre.
- Kurode! – exclamou o jovem loiro, e seu rosto de repente adquiriu uma luminosidade que a Hunter musical jamais vira – Como vai, garoto? – completou, fazendo-lhe carinho.
- Arf! Arf! – respondeu o cachorro, lambendo os dedos, o pulso, a manga da camiseta e tudo mais que conseguiu alcançar.
- Ah, para ele você dá um cumprimento decente! – resmungou Leorio.
- Está com ciúmes? – provocou o loiro, abrindo um sorriso travesso que não combinava nem um pouco com a personalidade séria que Senritsu conhecia tão bem.
- Sim, estou com ciúmes! – rebateu o outro – Vamos, me compense! Eu quero um beijo.
- Leorio! – ralhou Kurapika, corando.
Senritsu não teria percebido se o Kuruta não tivesse reclamado. Mas ela estava distraída, e aquela mudança de tom despertou seu interesse. As batidas. Estavam diferentes. Algo rápido. Sutil. Mas... interessante.
- É tão fácil provocar você! – dizia Leorio, afagando aqueles cabelos dourados.
- Você tem dez segundos para fugir, ou eu acabo com você!
- Ui! – disse Leorio, levando a mão direita ao peito – Que medo! Ele vai me botar de castigo.
- Leorio! – o jovem loiro reclamou outra vez.
Senritsu observava aquela cena, completamente perdida. Achava que Kurapika estava furioso, mas ele sorria. Ele... estava gostando da brincadeira. Aquilo surpreendeu a Hunter. Ela não conseguia despregar os olhos daquele trio curioso. Até o cachorro parecia fazer parte daquela intimidade na qual ela não fora incluída.
- Ei, quem é ela? – perguntou Leorio, finalmente se dando conta de sua presença.
- Ah, Leorio, quero que conheça Senritsu. Ela também trabalha para o Senhor Nostrad.
Ela ficou de pé e caminhou até o trio. Parou ao lado de Kurapika e estendeu a mão. Leorio cumprimentou-a no mesmo instante.
- Encantado. – então, virando-se para o Kuruta – Não sabia que tinha amigos além de mim.
- Minha vida não se resume a você, Leorio. – disse o jovem loiro, revirando os olhos.
Senritsu não estava prestando atenção. Estava concentrada demais na pulsação que sentia pelos dedos de Leorio. Uma pulsação serena, cheia de carinho e divertimento. Gostou disso. Pena que tivesse de largar aquela mão.
- Espero que esteja cuidando direitinho do meu filhote. – disse Leorio, passando os dedos pelos cabelos dourados do Kuruta mais uma vez.
- Leorio, pare com isso! – exclamou o jovem loiro, as bochechas coradas. Aos seus pés, Kurode latia freneticamente.
- Quieto, Kurode. – ordenou Leorio, cutucando-o com o joelho.
Os garotos continuaram a conversar. Pelo visto, tinham muitos assuntos para pôr em dia. Senritsu ouvia tudo sem escutar. Estava perdida em pensamentos. Perdida na canção.
Aquelas batidas que ouvia tão perto de si eram belas. Talvez as mais belas que já ouvira em sua curta vida. Eram batidas serenas, sinceras, perpassadas por um sentimento tão secreto que ela não tinha dúvidas de que o próprio Kuruta desconhecia.
As batidas ecoavam em seus ouvidos, lembrando-lhe o crepitar das chamas. Elas eram como um fiapo de esperança em uma floresta fria e cheia de perigos. Como o fogo que o mantém aquecido e afasta os animais selvagens.
Parada ali naquele parque movimentado, ela estava alheia à orquestra que se desenvolvia a seu redor. Só tinha olhos e ouvidos para o loiro ao seu lado. O loiro que ralhava com o amigo e ficava corado diante dos comentários inconvenientes que era forçado a ouvir. Kurapika... Seu pequeno pedaço de sol.
- Puxa, olhe a hora! – disse Leorio, consultando o relógio.
Senritsu assustou-se e olhou em volta. O parque estava quase vazio agora. Não havia mais crianças. No horizonte, a luz do crepúsculo lançava sua despedida enquanto o sol brincava de se esconder entre as montanhas.
Estava escurecendo.
- Precisamos voltar antes do anoitecer. – murmurou Kurapika, preocupado.
- Também preciso ir. – Leorio suspirou e passou a mão pelos cabelos negros – Bem... Até logo, então.
- Até logo. – respondeu Kurapika, sorrindo.
- Até logo, Senritsu. Foi um prazer conversar com você.
- Ah?
Ele estava falando com ela?
- Igualmente, Leorio.
O garoto sorriu e depois de afastou com Kurode em seus calcanhares. O cachorro olhou para trás e latiu, abanando a cauda. Em seguida, desapareceu com seu mestre.
- Vamos. – a voz de Kurapika despertou Senritsu de seus devaneios – Vamos logo.
Ele pegou os papéis no chão e caminhou para fora do parque. Ela o seguiu, tal como Kurode seguira Leorio. A volta para a mansão Nostrad foi silenciosa. Eles não trocaram qualquer palavra.
Ou, devo dizer, a volta foi silenciosa apenas para o jovem loiro, pois a Hunter musical ainda ouvia aquela canção serena e sincera. E escutava as palavras não ditas que vinham com ela.
Ao escutar aquela canção, Senritsu soube o segredo, aquele segredo que o próprio Kuruta desconhecia, e que ela não estava disposta a contar. Senritsu entendia tudo, sem que aquela melodia precisasse ser transformada em versos, sem que o Kuruta precisasse traduzir seu segredo em declarações. Ah, sim. Senritsu sabia o segredo.
Porque ela entendia a linguagem do coração.