Etéreo por Jude Melody


 

Etéreo

Ficwriter: Jude Melody
HunterxHunter - drama, romance - what-If
12 anos - yaoi/male slash - completa


Etéreo – “que eleva o espírito; sublime.

Que pertence à esfera celestial; divino”

(Dicionário Houaiss).

 

Leorio morreu dormindo. Estava sentado na poltrona, contemplando a paisagem pela janela, e fechou os olhos cansados para um rápido cochilo após o almoço delicioso que Sophie preparara com tanto carinho. O cochilo, porém, converteu-se em um sonho profundo, e o corpo do homem de cabelos grisalhos e olhos cercados por rugas tornou-se uma concha vazia.

Agora ele caminhava pelo reino etéreo, arrastando no chão as pantufas de domingo. Percebeu que não precisava mais dos óculos e os guardou no bolso da camiseta. Abriu um sorriso suave. Todos os seus amigos estavam ali, alguns deles ainda com a aparência muito jovem, infelizmente.

Pokkuru polia as pontas de suas flechas ao lado de Ponzu, que murmurava alguma coisa para suas abelhas. Os insetos passaram zunindo por Leorio, levando a mensagem sabe-se lá para quem. Ele acenou para os jovens, que apenas arquearam as sobrancelhas sem reconhecer no idoso o rapaz ousado e egocêntrico que os acompanhara no Exame Hunter setenta anos atrás.

Leorio continuou seu caminho e passou por outro casal, desta vez de pessoas um pouco mais velhas. A mulher de cabelos rosados tocava uma flauta enquanto o homem fazia anotações em um pequeno bloco. Quando terminou, ele leu o haicai em voz alta, e a cerejeira atrás deles floresceu, iluminando-os com sua magia.

O médico acenou para eles também, e Senritsu respondeu com um doce grito de alegria. Ela, é claro, reconheceria Leorio em qualquer lugar, pois seu coração ainda batia com a mesma pureza de quando eles eram apenas dois jovens Hunters lutando contra a crueldade do mundo. Basho, por sua vez, franziu o cenho para a esposa, perguntando-lhe quem era aquela figura esguia que descia pelo caminho de pedra.

Após mais alguns passos, ele se deparou com uma senhora estranhamente familiar. Mesmo depois de tantos anos, ainda se envergonhava de sua tentativa de ferir a examinadora. Ela percebeu sua inquietação e abriu um sorriso. Leorio respondeu com um aceno de cabeça e tratou de se afastar antes que recebesse uma pergunta impossível de responder.

O próximo conhecido causou-lhe um aperto no peito. A criança aproximou-se com um sorriso moleque no rosto e começou a correr e pular ao seu redor, chamando-o de vovô. Leorio arrematou Pietro em um abraço e sussurrou seu pedido de desculpas. O menino não entendeu nada. Assustado, afastou-se do idoso, os lábios entreabertos de medo.

Então, ele fitou aqueles profundos olhos castanhos e reconheceu neles o olhar daquele garoto cheio de energia que jurava a todos que queriam ouvir que se tornaria um médico quando crescesse. A dúvida cedeu espaço à alegria, e Pietro envolveu o velho amigo pelo pescoço, exclamando sua saudade e sua dor.

— Você veio! Você finalmente veio! Está tão velho... — murmurou, estudando com atenção as rugas no rosto, o grisalho nos cabelos, os calos nas mãos. — Espere. — Ele se afastou abruptamente. — Leorio, venha comigo! Tem uma pessoa que o senhor precisa ver.

Leorio apertou os lábios ao ser chamado de senhor, mas não teve tempo de contestar. Pietro já estava puxando sua mão enquanto descia a estrada de pedra. O menino ria e gritava para todos que quisessem ouvir que Leorio Paradinight finalmente chegara àquele doce Paraíso. Muitas das pessoas sorriram também. Outras apenas desviaram o olhar depois de alguns segundos e retornaram às suas atividades.

Durante a correria, Pietro quase atropelou uma garota que andava com uma bengalinha. O companheiro dela, uma criatura verde de olhos violeta, deu-lhe um pescotapa em repreensão e guiou a jovem para um pequeno lago no qual um grupo de patinhos fofos aprendia a nadar com a mãe.

— Por aqui! — disse Pietro, puxando um Leorio que tropeçava sem parar nas pedras irregulares.

Eles chegaram a uma enorme praça cheia de árvores e bancos para as pessoas sentarem. A alegria naquele lugar era quase palpável. Pessoas velhas conversavam com pessoas novas. Amigos, parentes e namorados de todas as idades se abraçavam e riam. Compartilhavam lembranças. Compartilhavam vida.

— Ali! — exclamou o menino, apontando para um carvalho.

Leorio arregalou os olhos sem acreditar. O jovem estava parado bem ali, de costas para ele. A brisa suave balançava suas roupas pesadas, uma espécie de conjunto azul adornado com listras douradas. Seus cabelos continuavam louros e eram tão lisos e brilhantes que poderiam pertencer a um anjo.

Pela primeira vez em anos, lágrimas desceram pelo rosto de Leorio.

— Eu... — murmurou Pietro. — Vou deixá-los a sós. — E desapareceu sem deixar vestígios.

Leorio precisou reunir todas as suas forças para dar o primeiro passo. Ele simplesmente não sabia o que dizer. O medo era tanto que ele sentiu uma enorme vontade de dar meia volta e se reunir a Basho e Senritsu. Já estava a dois passos da entrada da praça, quando foi vítima de uma dessas curiosas surpresas que nos acometem sem aviso.

A primeira coisa que ele ouviu foi o latido do cachorro. Virou-se de súbito, a tempo de ver o enorme labrador dourado jogar os seus trinta e dois quilos sobre seu frágil corpo. Leorio cambaleou e passou os braços pelo pescoço de Kurode, rindo e chorando ao mesmo tempo. Deixou que o fiel amigo lambesse suas bochechas, seus olhos, seus lábios. Até o cheiro da saliva canina parecia-lhe uma dádiva.

— Leorio?

Ele se assustou e largou Kurode, que tornou a ficar sobre as quatro patas, a língua rosada de fora em sinal de contentamento. A poucos metros de distância, o jovem de cabelos louros encarava os dois com um misto de fascínio, surpresa e descrença. Desta vez, Leorio conseguiu conter as lágrimas.

— Kurapika — sussurrou.

Ele não sabia o que doía mais, rever Kurapika depois de tantos anos, ou lembrar o quanto ele era novo quando faleceu. O Kuruta nunca fora muito sensato. Sempre ignorando os avisos de Leorio. Quando se tornou médico, o Paradinight cuidou do amigo por duas ou três vezes após batalhas sangrentas e mortais. Até que um dia os cuidados não foram mais necessários.

— Eu... — Kurapika aproximou-se com timidez. — Achei que não nos veríamos nunca mais.

— Idiota... — respondeu Leorio, e seu tom de voz fez o Kuruta se encolher. — Eu é que achei que não te veria nunca mais.

Kurapika abriu um sorriso. Seus olhos castanhos faiscavam. Não demorou muito para que as lágrimas transbordassem.

— Eu estou tão feliz — disse, mas a última palavra foi abafada por um soluço.

— Você está tão novo...

O Kuruta ergueu o rosto sem entender. Não que precisasse. Ele e Leorio tinham praticamente a mesma altura agora. Mas o hábito era algo difícil de perder, mesmo depois da morte.

— E você está tão velho... — respondeu, admirando as rugas que preenchiam o rosto que outrora conhecera tão bem.

— Você não deveria ter morrido tão cedo — sussurrou Leorio. — Deveria ter vivido. Deveria ter ficado comigo para sempre. Como você me prometeu quando tínhamos vinte e cinco anos.

Leorio ainda se lembrava de como seu coração andava apertado naqueles dias. Os ferimentos de Kurapika eram cada vez mais profundos, havia cada vez mais cicatrizes em seu corpo. Mas eram com outras cicatrizes que Leorio realmente se preocupava. Com aquelas que não eram visíveis, mas estavam ali, o tempo todo.

Kurapika tinha vinte e sete anos quando desfaleceu em combate. Ele conseguiu exterminar a Aranha, mas a troco de quê? Não tinha mais vida para construir seus sonhos. Nem tinha mais sonhos para construir em vida. Ele já era uma concha vazia antes de morrer.

— Sempre... — murmurou o Kuruta. — É um tempo longo demais, Leorio.

Ele se aproximou do mais novo, encostou sua testa na dele.

— Não para os que amam.

Ele abraçou Kurapika, permitindo-se recordar seu cheiro, a textura de suas roupas, tudo. Para ele, era como revisitar a casa dos pais após ficar afastado por tanto tempo. Mas, para Kurapika, era tudo uma descoberta. Os cabelos grisalhos e sem gel, os olhos miúdos, o cheiro...

— Eu senti saudades — disse Leorio, libertando de seu peito o peso que guardara durante sessenta anos. — Muitas saudades.

Kurapika deitou a cabeça em seu ombro.

— Eu também senti, mesmo sem perceber.

Os dois estavam tão imersos em seu pequeno momento de intimidade que mal perceberam quando o homem se aproximou. Ele tinha a mesma aparência jovem de Kurapika e um olhar severo que se suavizou no instante que viu o labrador dourado.

— Ei, desculpe incomodar, mas o senhor é o Leorio?

Kurapika afastou-se, envergonhado. Fingiu mexer nos cabelos antes de se voltar para o intruso.

— Squala?

Leorio deu um passo à frente.

— Sim, sou eu.

Squala abriu um sorriso.

— É que esse camaradinha aí... — Indicou Kurode com um gesto. — Esteve te esperando pelos últimos cinquenta anos.

Leorio lançou um olhar surpreso ao cachorro. Fazia cinquenta anos desde que ele falecera aos seus pés durante aquele jantar de Natal? A emoção daquele dia inundou seu peito. Leorio esfregou os olhos, perguntando-se quando se tornara tão emotivo.

— Agora, aquele ali... — Squala sorriu para Kurapika. — Acho que esteve te esperando a vida inteira.

Kurapika enrubesceu. Nunca se sentira tão envergonhado assim, e Leorio estava bem diante dele! Se fosse possível usar o nen naquele paraíso, ele atingiria Squala com um golpe de sua corrente.

— Cuide bem dele! — disse o Hunter, afastando-se.

Sua partida deixou a ambiguidade no ar. Não era possível dizer se a frase era para Leorio ou Kurapika. Os dois trocaram um olhar nervoso.

— Então... Esteve me esperando a vida inteira?

— Não seja estúpido! — rebateu o Kuruta. — Eu só... Eu... — gaguejou, visivelmente desconfortável com a situação. — Como eu poderia esperar alguém que me encontrou por acaso?

Leorio segurou sua mão. Apesar de todos aqueles anos, a sensação ainda era mesma.

— Eu me pergunto a mesma coisa.

Um sorriso leve desenhou-se no rosto de Kurapika. Ele puxou Leorio pela mão, e os dois passearam juntos pela praça, seguidos de perto por Kurode. A distância do tempo não se fazia mais presente. Não havia qualquer estranhamento naquelas duas almas que se conheciam tão bem. Elas caminhavam com suavidade por aquele paraíso. Preenchidas pelo brilho etéreo da esperança.

 

 

















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